por diogo oliveira
Há menos de duas décadas, percebemos que no Brasil vem se consolidando um certo discurso compartilhado por Ong´s, Estado, educadores, empresas, organismos internacionais, mídia, etc. que prescreve à juventude uma nova forma de fazer política. Esta nova forma será considerada por alguns autores críticos, como Regina Souza (2007), como uma forma de anulação da política, e não de sua promoção (Souza, 2007, p.11). Concordando em parte da tese principal de Souza, percebemos que no bojo das discussões atuais a respeito da participação política da juventude brasileira está a concepção de que a sociedade é explicada pela metáfora teatral. Haveria então um discurso hegemônico que explicaria o social e conceberia um modelo de participação política: a sociedade seria composta por um elenco de atores em negociação num espaço público nomenado como cenário, não havendo portanto relações de poder, dominação ou exploração, mas apenas e tão somente relações de dominação (p. 14). Esse discurso inscreve uma inversão na explicação da realidade, nas palavras da autora, já que não mais a metáfora teatral explicaria a sociedade, mas a sociedade seria um teatro, se espelharia na metáfora teatral1. Logo, os acontecimentos sociais são tomados como peças teatrais, os sujeitos sociais como simples atores que devem seguir um script, o espaço público (lugar da política) como cenário (lugar do consenso sem contestação).
Nesse matriz discursiva, a juventude seria capturada, segundo Souza, pelo enunciado do protagonismo juvenil, que desenvolveria a “nova forma” do jovem fazer política, uma forma individualista: a partir de um “ativismo privado” o jovem poderia realizar a mudança social, já que esta seria resultado da atividade direta dos indivíduos. Porém, na prática, o jovem é objeto, e não sujeito das políticas e projetos das organizações e instituições. Ele tem seu poder de agir limitado a aspéctos técnicos e a execução de projetos, dentro de uma concepção instrumental e racional mercadológica, onde o fazer política seria um tipo de “participação” baseado na atividade e realizações “concretas”, consistindo em trabalhos que buscam “encontrar soluções concretas para problemas reais”. Segundo a autora, essa forma de conceber a política se contrapõe àquela elaborada por Arendt, onde o poder de agir ( e não de fazer) institui a política, já que instaura o conflito, a transgressão, o novo. A anulação da política ocorreria por um consenso forjado pelo discurso, um consenso a respeito da “única forma de agir atualmente”, da “verdadeira e legítima forma de fazer política”, da “concreta leitura da realidade”, da forma de se conceber a política, apropriando e mesclando vários outros discursos divergentes e antagônicos.
Contudo, algumas considerações importantes devem ser observadas nessa análise discursiva. Reconhecemos que esta abordagem introduz profundas reflexões a respeito das ações institucionais e governamentais elaboradas para os jovens. Porém, os sujeitos inseridos nesses projetos que não incorporaram a atribuição de “ator ou protagonista” (logo, questionaram o consenso estabelecido) estariam instaurando o novo, a política? A autora trabalha em dois momentos com dois autores de profunda importância para o pensamento político: Michel Foucalt e Hanna Arendt.
Em Foucalt, Souza vai encontrar a concepção de (análise do) discurso que a permitiu elaborar uma profunda crítica à propagada “nova forma” de fazer política. Para a autora,
“o discurso não se apresenta como algo discernido, pronto e acabado ao pesquisador uma vez que não é um conjunto delimitado de textos, mas uma prática social com um movimento próprio. O discurso também não esconde uma essência, algo que deva ser desvendado, ele não é uma aparência sobre a qual pode descobrir a verdade. (SOUZA 2007, p.18)
Contudo, a autora aponta as próprias limitações de sua pesquisa, na medida em que
Os efeitos sociais do protagonismo juvenil - as maneiras de ser, pensar e agir estabelecidas pelo discurso e que fundamentam subjetividades e relações sociais - devem ser objeto de análise apenas na medida em que puderem ser detectadas no interior do próprio discurso. Ou seja, este estudo não se volta para os depoimentos, comportamentos e subjetividade do jovem protagonista, aquela figura por meio da qual o indivíduo supostamente se inscreve no discurso protagoniso juvenil. [...] O alcance da amostra discursiva em questão é tão-somente o discurso escrito, adulto e institucionalizado do protagonismo juvenil. (Souza, 2007, p.18, grifo nosso)
Nossa crítica residiria na problematização de algumas das limitações desta análise discursiva. Marco Antônio Torres nos lembra que os sujeitos não são meros reprodutores, suportes ou portadores dos discursos, porém o (re)elaboram e constituem uma autonomia frente ao discurso. A demarcação do objeto de estudo realizada por Souza não apresenta nenhum problema em si, mas, na medida em que há a trasferência da limitação metodológica para a limitação da compreensão da realidade, instaura-se uma questão. Isso quer dizer que, ao recusar reconhecer as possibilidades existentes para além do “discurso escrito, adulto e institucionalizado do protagonismo juvenil” , principalmente no que tange às subjetividades dos jovens em jogo, ela nega as fissuras e contradições que podem existir neste discurso, nega as possibilidades da ação política de sujeitos que, ao (re)elaborarem este discurso, o questionam, o confrontam e o transgride, isso se nós trabalharmos com a mesma concepção de política da autora, baseada em Arendt.
Pois é em Hanna Arendt que Souza busca a concepção de política que vai nortear seu trabalho. Porém, a política (e sua anulação) não é um objeto de fácil definição. Segundo Stolcke (200?)2, as reflexões de Arendt “sobre ‘o que é a política?’ contêm [uma] tensão [...] de caráter teórico-político, inerente ao dilema posto pela modernidade sobre como conciliar a liberdade de pensamento do indivíduo com o fato social da condição humana e da ação política”. Arendt opta pelo pensamento como dimensão política e considera a experiência viva como fonte do pensamento e da ação política. Para esta autora judia, “o poder de iniciativa, de começar algo novo no mundo, define a condição humana. Ésta faculdade é por ela denominada de natalidade, aquilo que introduz algo novo no mundo.” (Stolcke, 200?, p.?). A anulação da política ocorreria no consenso forjado, segundo Souza. Porém a fala transgressora e questionadora de sujeitos dentro dos espaços criados primeiramente para serem apenas suportes para os afazeres instrumentais podem dar outro caráter a esses espaços? Os espaços criados pelo discurso do protagonismo juvenil, por exemplo, poderiam ser apropriados e transformados em espaços para construção de novos discursos, agora de caráter emancipatórios? Stolcke aponta que, para Arendt,
A ação política [...] define-se como tal somente se acompanhada da palavra, do discurso, que implica e gera redes de relações e inaugura uma cadeia de acontecimentos cujo o fim é, não obstante, sempre, imprevisível. É esse caráter da imprevisibilidade do devir histórico que exige a agilidade propiciada pela liberdade de movimento, condição do pensamento livre. (Stolcke, 200?, p.?)
Ora, se a ação política requer um discurso, e se o discurso do protagonismo juvenil anula tal ação, quais seriam então os possíveis discursos existentes ou em vias de emergência que podem atender e potencializar as expectativas de transformação social existentes na juventude brasileira, expectativas que são expoliadas pelos “diretores sociais da encenação”?
Esta problemática surge no bojo das discussões iniciadas dentro de um projeto govenamental que corrobora o discurso do protagonismo juvenil. O consenso é estabelecido de “cima para baixo” e cabe aos bolsistas desse projeto refletirem até certo ponto, para não desordenar os prazos e metas. Eles devem executar as ações impostas de cima com uma certa destreza, “criatividade” e “autonomia”3 primada no individualismo. Aqueles atores que não se enquadram ou não conseguem desempenhar seu papel, é descartado; aos melhores, lhe são dados os papéis de protagonistas. Porém, no decorrer da implementação do projeto, verificamos a crítica e a contestação ao próprio projeto. Seriam os participantes do projeto simplesmente atores sociais, ou se constituem sujeitos políticos a partir de sua ação política contra o consenso estabelecido?
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